Jurisdiçao plural"The end of judges", reflexoes para a construçao de um judiciario socialmente sustentável

  1. HUERGO FARAH, PAULO EDUARDO
Dirigida por:
  1. Gabriel Real Ferrer Director
  2. Zenildo Bodnar Codirector/a

Universidad de defensa: Universitat d'Alacant / Universidad de Alicante

Fecha de defensa: 04 de noviembre de 2020

Tribunal:
  1. Maria Cláudia da Silva Antunes de Souza Presidente/a
  2. Andrés Molina Giménez Secretario
  3. Alexandre Morais da Rosa Vocal

Tipo: Tesis

Teseo: 640096 DIALNET

Resumen

A presente pesquisa tem como propósito o desenvolvimento de uma Jurisdição Plural, com a ampliação de órgãos jurisdicionais do Estado para além do Poder Judiciário, por meio da releitura do conceito tradicional de Jurisdição e de uma visão heterodoxa sobre a divisão de Poderes do Estado. Para tanto, desenvolveu o conteúdo em duas grandes partes, cada uma com cinco capítulos. A primeira grande parte, eminentemente descritiva, abordou a forma de resolução de conflitos desde a era pré-histórica até o surgimento do Estado moderno; os elementos e características do Estado moderno, em suas etapas liberal, social e democrática, inclusive traçando notas complementares sobre os Estados totalitários ditatoriais modernos; a interlocução evolutiva da Jurisdição com as dimensões do direito e o caos jurisdicional vivenciado atualmente em grande parte dos Estados ocidentais. A segunda grande parte foi propositiva. De modo geral, no capítulo seis foi exposta a gênese da Jurisdição Plural, em uma evolução sobre os atuais sistemas de Jurisdição una e dual atualmente conhecidos no mundo. No capítulo sete foram desenvolvidas, a partir de uma releitura da teoria da separação de Poderes, uma diferenciação, complementar e não substitutiva, entre Poder político relevante e Poder burocrático, que permitiu um novo olhar sobre a organização do Estado, alterando a visão piramidal clássica para uma visão heterodoxa orbital, transmudando a natureza de alguns órgãos públicos dependentes para independentes, notadamente os Órgãos Orbitais. No oitavo capítulo foram expostas dimensões da Jurisdição e conteúdos sobre reserva de Jurisdição, que possibilitaram a identificação aproximada de um núcleo essencial da função jurisdicional e a definição de um conceito de reserva de Jurisdição lato sensu, e, a partir deste, uma subclassificação em reserva do Judiciário, reserva do Orbital e reserva residual de Jurisdição. O capítulo nono tratou da independência dos Órgãos Orbitais, tanto com relação à função jurisdicional quanto em relação à administração pública, notadamente na necessária alteração principiológica da natureza jurídica da decisão que antes era considerada administrativa e agora passou a ser jurisdicional diante da ampliação dos órgãos públicos jurisdicionais. Também nesse capítulo foi desenvolvida uma tabela comparativa entre tribunais de exceção e Órgãos Orbitais, por meio de uma avaliação histórica. O décimo capítulo apresentou instrumentos de coparticipação entre a Jurisdição do Poder Judiciário e a dos Órgãos Orbitais, adaptando o instituto do reenvio prejudicial à Jurisdição Plural, demonstrando também como as tecnologias existentes, especialmente a inteligência artificial, poderão construir uma nova concepção de Jurisdição do século XXI. MOTIVAÇÃO DA PESQUISA O objetivo institucional da presente Tese é a obtenção do título de Doutor em Ciência Jurídica pelo Curso de Doutorado em Ciência Jurídica da Univali, no Brasil, em dupla titulação com a Universidade de Alicante, na Espanha. O seu objetivo científico é demonstrar a possibilidade de ampliação de órgãos jurisdicionais estatais para além do Poder Judiciário, sem que isso interfira na separação de Poderes ou gere reflexos ao princípio da unidade jurisdicional, a partir da hipótese abaixo descrita. O Estado moderno foi concebido no final do século XVIII a partir das revoluções liberais, que passaram a prever direitos abstratamente para toda a população. Esse primitivo modelo de Estado moderno, caracterizado pelo liberalismo, teve uma qualidade peculiar que foi a de, pela primeira vez de maneira efetiva, possibilitar a separação entre os Poderes. A teoria da separação entre os Poderes foi interpretada de maneira diferente entre os principais Estados da época. Nos Estados Unidos, por exemplo, criaram-se mecanismos a partir dos freios e contrapesos, pavimentando uma certa igualdade entre os Poderes, enquanto na França, em outro norte, também expoente da época, a separação entre os Poderes significou uma desconfiança com o consequente aviltamento do Judiciário perante Executivo e Legislativo. Como ponto em comum desse contexto revolucionário temos o surgimento do Estado constitucional – de direito –, onde o regramento especialmente elaborado pelo parlamento passou a ditar os rumos da sociedade. Nessa primeira fase do Estado moderno constitucional, o Estado também pode ser denominado como “legislativo”, diante da preponderância desse Poder estatal sobre o Executivo e o Judiciário, este último surgido como um poder nulo – aos olhos da Revolução Francesa –, como qualificou Montesquieu, pois o juiz deveria se limitar a ser a “boca da lei”, sem ser possível a ele fazer qualquer interpretação ou expressar juízo de valor. Esse mesmo reflexo atingiu o Executivo, também limitado em sua atividade pelos ditames da lei, com reduzida discricionariedade, o que era compreensível diante do fato da sociedade mundial estar naquele momento superando séculos de absolutismo monárquico. O Estado moderno constitucional liberal enfrentou diversas crises, especialmente diante da isonomia legislativa em querer tratar todos de maneira igual, inclusive os desiguais, o que acarretou graves distorções sociais que foram agravadas pela revolução industrial e o estímulo liberal ao capitalismo, dividindo a sociedade praticamente entre os proprietários do capital, integrantes de grupos econômicos de expressão, e o operário, integrante do proletariado que, com a abundante mão de obra disponível no mercado em razão da substituição do homem pelas máquinas, passou a constituir uma classe de miseráveis, ensejando uma nova revolta que fez emergir o Estado moderno constitucional social, no início do século XX. Nessa nova roupagem, juntamente com os direitos de primeira geração instituído pelo Estado liberal, acresceram-se ao Estado os direitos de segunda geração, equilibrando de certa forma a balança. Foi nesse contexto que surgiram sindicatos, associações, entidades, agências estatais, modificação da legislação, criação do ministério do trabalho dentre tantas outras que fizeram com que o Poder Executivo se agigantasse e fosse alçado ao principal Poder político do Estado no lugar do Legislativo, continuando, ao menos nessa fase inicial, o Judiciário como um Poder esquecido. Foi então que o Estado social avançou ao Estado democrático, e o Judiciário passou a ganhar notoriedade na sociedade justamente por exercer seu papel de garantidor de direitos, sob o prisma constitucional, e não apenas mero repetidor da letra fria da lei, ensejando, com isso, uma nova fase de observação dos Poderes do Estado. Enquanto lá no início, durante o Estado liberal, o Poder Legislativo era absoluto em relação aos demais, e no decorrer do Estado social o Executivo assumiu esse papel em detrimento aos demais, foi no Estado democrático que o Judiciário conquistou seu protagonismo, depois de quase dois séculos de hibernação. Mas não de maneira a suplantar os demais Poderes, ao contrário, e sim de modo a equilibrar as funções de maneira participativa para o desenvolvimento do Estado e da sociedade. Essa transformação contemporânea de proeminência do Judiciário ocorreu diante da possibilidade de interpretação da legislação nos casos a ele submetidos, especialmente no controle de constitucionalidade da legislação produzida pelo parlamento para a preservação dos direitos nela insculpidos. Em uma análise histórica, o Judiciário, assim, ao despertar, primeiramente buscou seu equilíbrio com o Legislativo. Por isso esse primeiro olhar da revolução jurisdicional está pautada para o direito, no controle das normas gerais e na criação das normas individuais. Há, dessa forma, uma equiparação na relação Legislativo (Estado liberal) versus Judiciário (Estado democrático). O Judiciário conquistou e reafirmou seu papel de garantidor de direitos ao resgatar a sua possibilidade de interpretar as leis – em sentido amplo – notadamente a partir de uma visão constitucional. Mas a Jurisdição, enquanto função do Estado – e não especificamente o Judiciário –, continua desequilibrada em relação à segunda transformação ocorrida no desenvolvimento estatal. Foi nessa quadra que o Estado se agigantou, assumindo um papel verdadeiramente prestacional ao cidadão, conferindo, também, inúmeros direitos até então não disponível a maior parte da população. Toda essa transformação, absolutamente positiva na esfera da conquista civilizatória da humanidade, notadamente para o aumento do acesso aos direitos ptambém or meio dos tribunais, acarretou, concomitantente, uma sobrecarga de modo a praticamente colapsar o sistema de justiça do Estado. Desde a metade do século XX, pouco tempo depois da retomada do crescimento da humanidade no pós-guerra, já se verificou que a prestação jurisdicional estatal não seria suficiente para enfrentar os dilemas jurídicos que emergiam dessa “nova” sociedade. Essa constatação ficou ainda mais premente após a publicação do “Relatório de Florença”, cujos resultados podem ser observados notadamente quando Cappelletti e Garth apresentam inúmeras alternativas para a composição de litígios de maneira não estatizada. As ADRs, por exemplo, multiplicaram-se, ao ponto que “subverter” até mesmo a clássica lógica processual de “instrução e sentença”, inserindo oficialmente no campo do processo também elementos como a conciliação; as ADRs, e outras sugestões de melhoria, assim, não se limitaram ao campo privado. Não obstante, essas e inúmeras outras soluções alternativas e adequadas para a solução de litígios, que tanto deram esperança para o desenvimento de uma Jurisdição mais adequada, também não apresentaram todos os resultados imaginados, e a Jurisdição do Estado inaugura o século XXI com os mesmos problemas, especialmente de morosidade e efetividade, ainda que com roupagens diversas. Essa é uma constatação que, não obstante ser ponto comum entre juristas, pode ser igualmente verificada sob a ótica da estatista; poucos Estados ocidentais democráticos conseguem prestar a Jurisdição de modo satisfatório. Nessa senda, incontáveis soluções são apresentadas como maneira de reformulação da prestação Jurisdição, mas poucas delas tangenciam a ampliação dos órgãos públicos capazes de proferir decisões jurídicas definitivas e imunizadas pelos efeitos da coisa julgada. Em regra, essa é uma atividade desenvolvida com exclusividade pelo Poder Judiciário. Nesse mesmo cenário, retornando aos preceitos históricos acerca do Estado social, o Executivo, que ganhou notável proeminência no período, diante das exigências de uma nova sociedade e de um novo Estado, multiplicou suas estruturas, justamente de modo a ofertar ao cidadão uma imensa gama de direitos, especialmente os de segunda geração, sem prejuízo daqueles que surgiram desde então, os quais incrementaram ainda mais o arcabouço administrativo público. São incontáveis órgãos públicos que passaram literalmente a ordenar a vida das pessoas em sociedade, em um primeiro momento na relação entre o particular e o Estado – como observado no INSS ou no CADE –, e em um segundo momento na relação entre particulares – como ocorre em uma contenda no PROCON ou em uma agência reguladora – onde não se consegue viver sem eles em um mundo burocrático absolutamente dependente do Estado. Nessa imensidão de órgãos administrativos espalhados por todos os setores do Estado, obrigatoriamente se tomam decisões jurídicas sem, contudo, que tenham força suficiente para fazer coisa julgada, pois o Estado moderno se desenvolveu sobre o dogma da inafastabilidade e unicidade da jurisdição, o que significa que o Poder Judiciário poderá ser sempre acionado para dar a última palavra jurídica sobre a questão. E é precisamente nesse campo estrutural que pode residir a transformação na forma da prestação da função jurisdicional. A mudança da visão sobre a hierarquia piramidal dos órgãos públicos, que sob essa ótica estariam submetidos aos respectivos Poderes, é a chave para compreender que esses mesmos órgãos públicos estão submetidos à legalidade estatal, ao ordenamento jurídico, e não ao superior hierárquico, podendo, dessa forma, exercer parcela da Jurisdição do Estado de modo independente, para além do Poder Judiciário. Esses órgãos serão denominados na presente pesquisa como Órgãos Orbitais da Jurisdição Plural, que seriam competentes para a análise de conflitos sociais sem que haja necessidade de controle do Poder Judiciário. A atuação jurisdicional dos Órgãos Orbitais transcenderia os conflitos existentes entre particular e o Estado, e avançaria também para cuidar de situações envolvendo disputa jurídica entre particulares, fazendo emergir uma Jurisdição Plural – ou pluralista –, situada em um patamar além daquela verificada nas jurisdições una e dual – monista e dualista. PERSPECTIVA DE DESENVOLVIMENTO Os resultados do trabalho de exame da hipótese anteriormente explanada, que desaguam no objetivo geral da Tese que é a demonstração da possibilidade de ampliação dos órgãos jurisdicionais estatais para além do Poder Judiciário por meio de uma Jurisdição Plural, estão expostos na presente Tese, de forma sintetizada, como segue. Os dados colhidos foram registrados primeiramente em duas grandes partes: a primeira preponderamente descritiva, que cuida, de maneira perfunctória, da exposição da organização social para a resolução de conflitos “jurídicos”, desde a antiguidade até os dias de hoje, com especial destaque para o monopólio da Jurisdição a partir da formação do Estado moderno. A segunda parte é essencialmente propositiva, buscando justificar a possibilidade de ampliação dos órgãos jurisdicionais estatais para a formação da Jurisdição Plural. Cada uma dessas duas partes contém cinco capítulos, sendo dez capítulos ao total. Cada um dos capítulos tem um objetivo específico disposto para dar suporte ao objetivo geral. O primeiro capítulo da presente pesquisa aborda, de modo generalizado, a evolução humana em sua era pré-estatal e a maneira de solucionar conflitos sociais por meio do direito e da “Jurisdição”, principiando na pré-história, passando pela antiguidade, pela idade média e culminando na idade moderna. O segundo capítulo apresenta o nascimento e os elementos caracterizadores do Estado moderno considerados para aquela época: expõe inicialmente a sua sedimentação evolutiva, o possível pioneirismo de Portugal, seus elementos essenciais e a implementação da burocracia e da monopolização da força coercitiva diante da estatização da produção do direito e da Jurisdição. Sob a ótica da Jurisdição, especialmente no primeiro capítulo é possível observar como era o seu exercício durante a sociedade pré-estatal, e, a partir disso, extrair a ideia de resolução de conflitos como escopo principal da respectiva atividade, concepção que será melhor trabalhada no oitavo capítulo, que principia fazendo uma explanação sobre as finalidades da Jurisdição, abordando o seu viés político, jurídico e social, com o objetivo de encontrar um núcleo essencial para a função jurisdicional de modo a estabelecer uma nova classificação para a “reserva de Jurisdição”. A resolução de conflitos estaria contida na dimensão social da Jurisdição. A partir do contido no capítulo segundo, é igualmente possível extrair elementos que formarão, também no oitavo capítulo, as bases principiológicas das dimensões política e jurídica da Jurisdição. É importante frisar, nesse ponto, que o mundo descrito nos dois primeiros capítulos era a realidade conhecida por Montesquieu ao desenvolver sua teoria sobre a separação dos Poderes na obra O Espírito das Leis, em 1748. A primeira revolução industrial, por exemplo, principiou na Inglaterra por volta de 1760, e a luz elétrica foi experimentada pela humanidade apenas em 1879, quando Edison conseguiu acender pela primeira vez uma lâmpada. Todo o conteúdo descrito na presente pesquisa nos capítulos seguintes é posterior à publicação da obra doutrinária maior de Montesquieu. Apesar disso, os dogmas concebidos nessa sociedade agrária ainda permanecem vivos na pós-modernidade. O terceiro capítulo aborda a evolução do Estado moderno, que nasceu absolutista, passou a ser constitucional liberal, constitucional social e constitucional democrático, indicando, em cada etapa, notas pontuais sobre como a Jurisdição era observada nesse período. Em complemento, nesse capítulo também são expostos os Estados ditatoriais contemporâneos: socialista soviético, fascista italiano e nazista alemão, que são essenciais para a presente pesquisa ao menos sob duas óticas: a primeira é para observar como são instituídos os tribunais de exceção a partir da existência de Estados totalitários; a segunda é que, o objetivo principal da separação de Poderes do Estado era evitar o despotismo e a tirania, desconcentrando as funções políticas da pessoa do governante, depositando a legislativa no parlamento e a jurisdicional nos tribunais, garantindo, assim, também a liberdade individual. Como nos narra a história, é possível perceber que não é a função jurisdicional que torna o Estado totalitário, mas sim o Estado totalitário é que torna a função jurisdicional tirana e o seu exercício ilegítimo. Dessa forma, em um viés histórico, os registros sobre os regimes ditatoriais servirão para embasar os fundamentos expostos no capítulo nono acerca da independência do julgador orbital, da unificação da Jurisdição estatal e da diferenciação dos Órgãos Orbitais da Jurisdição Plural em relação aos tribunais de exceção. O quarto capítulo expõe a sedimentação das dimensões do direito com a respectiva interlocução com o perfil do juiz e da função jurisdicional. Está dividido em cinco tópicos: o primeiro contém notas introdutórias; o segundo cuida do papel do juiz no Estado liberal e da primeira dimensão de direitos; o terceiro do juiz no Estado social e a relação com as duas primeiras dimensões do direito; o quarto item trata da postura do juiz e do escopo da Jurisdição nos Estados totalitários e o quinto expõe o perfil do juiz no Estado constitucional correlacionando a atividade jurisdicional com todas as dimensões do direito, finalizando com a abordagem contemporânea pontual sobre a Jurisdição supranacional e a mundialização da Jurisdição. O quinto capítulo é uma reflexão sobre a insuficiência heterocompositiva jurisdicional estatal vivenciada na atualidade, possivelmente em todos os Estados constitucionais democráticos ocidentais. Há uma constatação absolutamente reconhecida no meio jurídico de que a Jurisdição, na forma como ela é atualmente prestada pelo Estado, é insuficiente para combater os problemas jurídicos da sociedade, tornando-a insustentável. Sem, de nenhuma forma, pretender esgotar as possíveis causas, nesse capítulo são lançadas apenas alguns pensamentos desenvolvidos a partir da pesquisa doutrinária, assim como dados estatísticos sobre a função jurisdicional estatal, especialmente a brasileira, mas não se limitando a ela. O capítulo está subdividido em cinco tópicos. O primeiro deles apontada uma razão individual para o caos jurisdicional, a partir da análise do individualismo inimigo da cidadania na modernidade líquida. O segundo aborda um fator coletivo, consistente no descompasso entre as necessidades sociais contemporâneas expressadas pelos novos direitos em relação às antigas concepções estruturais em uma sociedade de risco. O terceiro indica uma limitação natural sobre a dissonância entre a velocidade das transformações sociais e a capacidade de resolução de conflitos pela via ortodoxa estatal. O quarto expõe um consectário lógico sobre a insustentabilidade da Jurisdição monopolizada pelo Estado sob a ótica da estatística processual. O quinto e último traz uma singela reflexão sobre a sustentabilidade da Jurisdição e a necessidade do ser humano enfrentar de maneira organizada seus problemas ambientais, inclusive sob o prisma, de um modo geral, do 16º objetivo de desenvolvimento sustentável da Organização das Nações Unidas – ONU, introduzindo, ao final, a ideia da Jurisdição Plural, que será desenvolvida integralmente na segunda parte da pesquisa. Essa primeira parte da pesquisa, absolutamente descritiva, foi desenvolvida para sustentar, especialmente do ponto de vista histórico, as proposições que se pretendeu fazer na segunda parte. A importância dos dois primeiros capítulos consiste, além do conhecimento sobre a maneira como os conflitos sociais eram resolvidos por meio da “Jurisdição” antes da idade moderna, para compreender como o mundo estava organizado no momento em que Montesquieu entabulou a sua teoria sobre a separação de Poderes estatais na obra O Espírito das Leis. O objetivo foi o do registrar uma espécie de “fotografia”, em razão disso outros elementos pós-modernos estatais, por exemplo, não foram desenvolvidos naquele momento – vide, nesse campo, o Estado virtual estônio descrito somente no último capítulo. Daquela forma era o mundo naquela época, que experimentava a sua primeira revolução industrial. E grande parte das instituições atuais, especialmente as públicas, ainda sobrevivem pautadas em uma realidade da sociedade agrária pré-moderna. Os três capítulos seguintes demonstram o quanto o Estado e a Jurisdição mudaram desde então, possibilitando a reflexão acerca da necessidade de mutação e desapego às tradições e dogmas que nos prendem ao passado e impedem uma evolução para o futuro. Hoje, apenas a título comparativo, estamos atravessando a quarta revolução industrial. Não se pode olvidar, nesse contexto, que a Jurisdição, ao menos desde a criação do Estado moderno constitucional, é uma função pública, uma atividade desenvolvida pelo Estado. Diante disso, para tratar de Jurisdição, é igualmente necessário expor elementos essenciais do Estado. Por isso, a abordagem da primeira grande parte da pesquisa versou tanto sobre o Estado como sobre a Jurisdição. A segunda grande parte da pesquisa trata da exposição da Jurisdição Plural proposta na presente Tese. A Jurisdição Plural, em linhas gerais, consiste em uma espécie de evolução aos modelos de Jurisdição atualmente conhecidos nos Estados constitucionais democráticos, “una” ou “dual”. Na Jurisdição una, cabe somente ao Poder Judiciário o exercício da função jurisdicional do Estado; na dual, além do Judiciário, outros órgãos públicos exercem igualmente Jurisdição, para dirimir conflitos jurídicos entre o Estado e o particular (intraneus vs. extraneus), um modelo também conhecido como Jurisdição administrativa ou francesa. Na Jurisdição Plural outros órgãos públicos, para além do Poder Judiciário, também desenvolveriam função jurisdicional, mas não se limitariam ao enfrentamento dos processos envolvendo o Estado, podendo dirimir igualmente conflitos jurídicos entre particulares (extraneus vs. extraneus). Essa proposta foi preliminarmente desenvolvida no sexto capítulo. O sexto capítulo principia demonstrando a dificuldade em se conceituar operacionalmente a categoria Jurisdição, concluindo que, para o Estado moderno, o mais importante é saber quais são os órgãos que desenvolvem a função jurisdicional, não se apegando tanto à definição diante do respectivo conceito polissêmico. Além disso, o sexto capítulo expõe as famílias de tradição jurídica existentes no mundo, a civil law, a common law e os direitos socialistas, assim como a subclassificação da Jurisdição una e dual. Também aborda os sistemas administrativos pré-jurisdicionais existentes no mundo, como uma maneira prévia de ensejar a reflexão sobre como esses procedimentos administrativos são custosos, tanto ao Estado quanto ao particular, e que, com poucas adaptações, eles poderiam se integrar formalmente à função jurisdicional estatal. São nesses órgãos públicos, em regra subutilizados, especialmente nos Estados que adotam a civil law como modelo jurisdicional, que está concentrada a gênese da Jurisdição Plural: a transformação de alguns desses órgãos administrativos em jurisdicionais a partir da inserção de determinadas características – sem prejuízo da criação de outros. O capítulo encerra abordando os órgãos “quase-jurisdicionais” amplamente existentes da common law, como modelo de Órgão Orbital que poderia ser transformado em jurisdicional para compor a Jurisdição Plural. Além disso, descreve o Tribunal das Águas de Valência, um interessante e peculiar órgão jurisdicional situado fora do arcabouço estatal, reconhecido constitucionalmente, que resolve conflitos jurídicos provenientes da distribuição da água na região de Valência, na Espanha, há cerca de mil anos, de maneira absolutamente exitosa e eficaz, demonstrando que a Jurisdição pode ser desenvolvida plenamente fora das fronteiras estatais, concedendo maior suporte à proposta da Jurisdição Plural sobre a possibilidade de outros órgãos exercerem Jurisdição para além do Poder Judiciário, mesmo quando se trata da disputa entre particulares acerca de um bem indisponível. É importante destacar, nesse contexto, que, apesar da Jurisdição Plural ser uma proposta aberta e passível de ser implementada em Estados adotantes da common law, ela está mais voltada à tradição romano-germânica da civil law. Isso porque na common law há costumeiramente outros organismos jurisdicionais para além do Poder Judiciário capazes de resolver definitivamente conflitos jurídicos em sociedade. Esses órgãos da common law, conhecidos como “quase-jurisdicionais”, são habilitados para proferir decisões jurídicas dotadas dos efeitos da res judicata caso não haja impugnação judicial dentro de determinado prazo, inclusive em temas sensíveis e na relação exclusiva entre particulares; assim, suas decisões podem fazer coisa julgada, se antes do trânsito em julgado não forem impugnadas e controladas pelo Poder Judiciário. Não obstante, como será demonstrado no decorrer na pesquisa, a Jurisdição Plural poderia fornecer mecanismos auxiliares para o desenvolvimento da Jurisdição também nesse modelo. Os quatro capítulos seguintes procuram justificar a proposta de ampliação dos órgãos públicos jurisdicionais: primeiramente sob a ótica da separação de Poderes; depois sob a reserva de Jurisdição e, por fim, a partir da independência e imparcialidade do órgão julgador. O décimo capítulo desenvolve mecanismos de integração entre a Jurisdição política do Poder Judiciário e a Jurisdição burocrática dos Órgãos Orbitais. O sétimo capítulo trata, como mencionado, da Jurisdição Plural sob a ótica da separação dos Poderes do Estado. O capítulo inicia expondo os termos essenciais sobre Poder, Política e Estado, abordando, na sequência, os marcos histórico-evolutivos por meio de autores e eventos: Platão; Aristóteles; Maquiavel; Locke; Montesquieu, Estados Unidos e França, os dois últimos a partir das respectivas constituições. Em um terceiro momento, indica a leitura contemporânea acerca da separação de Poderes do Estado, utilizando como parâmetro: Kelsen; Canotilho; Grau; Zippelius, Häberle e Ferrajoli. Sem prejuízo dos autores destacados, outros foram igualmente citados. Essa exposição serviu para embasar uma releitura dinâmica sobre a separação de Poderes estatais, buscando fazer uma distinção, não substitutiva mas sim complementar, entre o Poder político e o burocrático do Estado, para além da tripartição funcional tradicional. No Poder político estriam reservados os núcleos materiais e essenciais de cada uma das três funções clássicas: executiva, legislativa e jurisdicional, a serem exercidas de modo exclusivo pelos três Poderes organicamente divididos do Estado (Executivo, Legislativo e Judiciário). O que não estivesse contido no núcleo essencial, poderia fazer parte do Poder Burocrático. O Poder burocrático, por sua vez, seria exercido pelos órgãos “subalternos” estatais. A releitura contemporânea, a partir dos autores citados, também permitiu alterar o posicionamento estrutural desses órgãos públicos, emergindo uma classificação diferente, transmudando a visão piramidal para a orbital – Órgãos Orbitais da Jurisdição Plural. Ao final, procurou-se demonstrar a possibilidade desses órgãos reclassificados como “Orbitais” exercerem a função jurisdicional do Estado, observando uma reserva específica de competência e sendo dotados de independência para o exercício da função. O oitavo capítulo trata da delimitação da competência de atuação jurisdicional dos Órgãos Orbitais, cujo exercício estaria restrito ao que não estivesse depositado no núcleo essencial da função jurisdicional. A tentativa de aproximação da definição do conteúdo do núcleo da função jurisdicional foi buscada a partir dos escopos da Jurisdição e da respectiva conjugação com critérios atinentes à reserva de Jurisdição lato sensu. Então, primeiramente, dividiu-se, pautado nos ensinamentos de Dinamarco, em três as dimensões da Jurisdição: política, jurídica e social. Com base nos escopos, ingressou-se na definição da reserva de Jurisdição, propondo uma classificação que resguardasse as competências do Judiciário enquanto órgão de Poder político. Assim, dentro da reserva de Jurisdição, haveria também uma reserva do Poder Judiciário, notadamente nas situações principiológicas e axiológicas que demandassem dele a prerrogativa da primeira palavra, de exercício exclusivo de Poder político, não alcançável, portanto, aos Órgãos Orbitais. A reserva de Jurisdição lato sensu seria composta pela reserva do Judiciário, reserva do Orbital e reserva residual de Jurisdição. O nono capítulo aborda a independência do julgador orbital no exercício da função jurisdicional, sob dois aspectos. O primeiro deles é o jurídico, concedendo ao julgador garantias legais próximas as dos juízes para que se tornem independentes; não somente livres para decidir, mas especialmente desvinculados da administração e do “governo”, alterando a natureza da decisão jurídica de administrativa, voltada ao interesse público geral, para efetivamente jurisdicional, na esfera da garantia de direito individual. O segundo é a independência sob o aspecto histórico. Além de expor os motivos que ensejaram o Estado moderno a adotar o princípio da unidade jurisdicional, os quais não impediriam, na atualidade, trilhar o caminho inverso para a ampliação dos órgãos jurisdicionais para além do Poder Judiciário, nesse capítulo também são registrados dados históricos, dispostos em uma tabela, por onde é possível efetuar uma verificação preliminar distintiva entre um Órgão Orbital e um tribunal de exceção. Nesse ponto, tendo em vista que normalmente os tribunais de exceção contemporâneos normalmente advém de Estados totalitários – e os regimes monárquicos despóticos estão concentrados em uma etapa evolutiva mais distante –, as exposições sobre os regimes fascista, nazista e leninista dispostos na primeira grande parte da presente pesquisa foram de essencial importância para a compreensão e desenvolvimento comparativo realizado no capítulo em voga. A pesquisa destaca, no décimo capítulo, mecanismos de integração entre a Jurisdição natural, prestada por seres humanos, e a artificial, desenvolvida com a ajuda da cibernética. O capítulo está dividido em duas partes. A primeira trata da integração na Jurisdição Plural por intermédio de mecanismos humanos, notadamente a partir da utilização, de forma análoga, da ferramenta do reenvio prejudicial existente no direito da União Europeia. Em linhas gerais, o reenvio prejudicial é uma consulta que o juiz do Estado-membro europeu pode fazer ao Tribunal de Justiça da União Europeia para dirimir dúvida sobre a validade ou a interpretação do direito da União Europeia. De maneira objetiva, quando o juiz estatal – ou as partes –, durante a tramitação do processo na Jurisdição nacional, depara-se com dúvida sobre o direito da União, qualquer um deles pode efetivar a consulta ao Tribunal, ocasião em que o processo fica suspenso até que seja apresentada a resposta sobre o direito em tese, que se torna vinculativo erga omnes. O reenvio prejudicial é um mecanismo de integração entre a Jurisdição estatal e a supranacional da União Europeia. O Tribunal de Justiça não ingressa no mérito da demanda. Esse mesmo instrumento foi adaptado para a integração entre a Jurisdição política do Poder Judiciário e a Jurisdição burocrática dos Órgãos Orbitais, especialmente para o enfrentamento dos hard cases e para o fechamento das lacunas eventualmente existentes nos ordenamentos jurídicos, notadamente em relação à execução de medidas acobertadas pela reserva do Judiciário. O reenvio prejudicial, portanto, assim como na União Europeia, não teria o condão ou o objetivo de exercer nenhum controle sobre a Jurisdição dos Órgãos Orbitais; ao contrário, seria ele um importante instrumento coparticipativo de integração auxiliar para que a Jurisdição seja efetivamente prestada, ultrapassando, também de certa forma, a triangular visão clássica sobre o processo, que prevê na relação processual autor, réu e um único juiz: por meio do reenvio prejudicial a sentença seria multicêntrica. A segunda parte do décimo capítulo cuida da Jurisdição do futuro, que já faz parte do presente, consistente na integração da Jurisdição Plural por mecanismos cibernéticos. Principia essa segunda parte introduzindo noções essenciais sobre a quarta revolução industrial, conhecida como “4.0”. Avança correlacionando as novas tecnologias à função jurisdicional estatal, como, por exemplo, a inteligência artificial - IA (também IA forte e fraca, machine learning e deep learning), o big data (analitycs e jurimetria), o blockchain e o cloud computing, conceituando cada uma das categorias e exemplificando de maneira prática a forma em que elas poderão ser empregadas na Jurisdição. Traz à tona, nesse campo, novas concepções sobre smart courts, tribunais inteligentes que fariam uso efetivo das novas tecnologias como forma de mudar diametralmente a Jurisdição como atualmente é prestada, não apenas com relação ao acesso, mas especialmente na transmudação da forma síncrona analógica para julgamentos digitais online com formas assíncronas, notadamente a partir da incementação das ODRs - online dispute resolutions. São expostos, além da concepção teórica sobre os novos tribunais online, também tribunais já existentes que adotam a IA em seu cotidiano, como os tribunais tecnologicamente inteligentes da China, os juízes robôs da Estônia e o Judiciário brasileiro 4.0. A presente pesquisa finaliza com a abordagem sobre a Jurisdição Plural 4.0, trazendo dois exemplos práticos e correlacionando a tecnologia existente com a atividade futura dos Órgãos Orbitais no exercício da Jurisdição: o primeiro exemplo é um tribunal administrativo online existente no Canadá, na província de British Columbia, denominado Civil Resolution Tribunal – CRT. O CRT canadense é competente para decidir acidentes de veículos, pequenas causas, disputas condominiais e socidade de ações cooperativas, e suas decisões são vinculativas e possuem força de ordem judicial, diferindo pontualmente de algumas características existentes nos Órgãos Orbitais. O segundo exemplo seria a adaptação de plataformas online existentes no Brasil para a resolução de conflitos, como o consumidor.gov.br, mediante poucas alterações, para que pudessem exercer a função jurisdicional como uma espécie de tribunal online, de modo semelhante a outros exemplos citados dentro do capítulo. Essa segunda grande parte da pesquisa expõe, assim, de modo geral, o surgimento dos Órgãos Orbitais na estrutura estatal, posicionando-os na esfera do Poder burocrático estatal, para a resolução de conflitos jurídicos burocráticos, respeitando a competência jurisdicional entabulada por meio da reserva do Judiciário, cujas decisões farão coisa julgada diante da independência do julgador orbital, que poderá se utilizar de mecanismos jurídicos humanos e cibernéticos para a efetivação de direitos em sociedade, procurando justificar, assim, como seria possível superar antigos dogmas existentes ainda hoje mas que têm origem na sociedade agrária pré-moderna e que em nada contribuem para a evolução da sociedade do século XXI. CONCLUSÕES A presente Tese teve como propósito o desenvolvimento de uma Jurisdição Plural, diante da ampliação de órgãos jurisdicionais heterocompositivos do Estado, para além do Poder Judiciário, capazes de proferir sentenças com caráter de definitividade e dotadas dos efeitos da coisa julgada, por meio de uma releitura do conceito tradicional de Jurisdição e de uma visão heterodoxa sobre a divisão de Poderes e a distribuição orgânica das funções do Estado. Para tanto, o desenvolvimento da pesquisa foi segmentado em duas grandes partes. A primeira grande parte comportou um conteúdo absolutamente descritivo, servindo de suporte teórico às propostas registradas na segunda grande parte. Nenhuma das considerações dispostas nos cinco primeiros capítulos contou com ineditismo, os quais abordaram temas diversos sobre Estado, direito e Jurisdição, em uma espécie de linha do tempo, como, por exemplo: a forma de resolução de conflitos desde a era pré-histórica até o surgimento do Estado moderno; elementos e características do Estado moderno, em suas etapas constitucionais liberal, social e democrática, inclusive traçando notas complementares sobre os Estados ditatoriais como o fascista, nazista e socialista; interlocução evolutiva da Jurisdição com as dimensões do direito e o caos jurisdicional vivenciado atualmente em grande parte dos Estados constitucionais democráticos ocidentais. A segunda grande parte, também composta por cinco capítulos, contou com proposições inéditas em todas elas, seja pelo caráter de inovação ou mesmo diante de uma releitura sobre antigas concepções, conjuntamente expostas de modo a confirmar a hipótese inicial de ampliação dos órgãos jurisdicionais heterocompositivos do Estado. De modo geral, no capítulo seis foi exposta a gênese da Jurisdição Plural, em uma evolução sobre os sistemas de Jurisdição una e dual atualmente conhecidos no mundo. No capítulo sete foram desenvolvidas, a partir de uma releitura da teoria da separação de Poderes, uma diferenciação, complementar e não substitutiva, entre Poder político relevante e Poder burocrático, que permitiu um novo olhar sobre a organização burocrática orgânica do Estado, alterando a visão piramidal clássica para uma visão orbital heterodoxa, transmudando a natureza de alguns órgãos dependentes para independentes, notadamente os Órgãos Orbitais. Essa diferenciação também possibilitou a definição de uma Jurisdição burocrática para além da tradicional Jurisdição política desenvolvida pelo Judiciário enquanto Poder político relevante do Estado. No oitavo capítulo foram expostas dimensões da Jurisdição e conteúdos sobre reserva de Jurisdição, que possibilitaram a identificação aproximada de um núcleo essencial e material da função jurisdicional e a definição de um conceito de reserva de Jurisdição lato sensu, assim como, a partir desta, uma subclassificação em reserva do Judiciário, reserva do Orbital e reserva residual de Jurisdição. O capítulo nono tratou da independência dos Órgãos Orbitais, tanto com relação à função jurisdicional quanto em relação à administração pública. Nesse segundo ponto, cuidou de demonstrar a necessária alteração principiológica da natureza jurídica da decisão que antes era considerada administrativa e agora passou a ser jurisdicional, deixando de estar situada na esfera do governo atendendo ao interesse público geral, passando a se situar na esfera da garantia do direito individual. Também nesse capítulo foi desenvolvida uma tabela comparativa entre tribunais de exceção e Órgãos Orbitais, mostrando características pontuais para cada um deles por meio de uma avaliação histórica. O décimo capítulo apresentou instrumentos de coparticipação entre a Jurisdição do Judiciário e a dos Órgãos Orbitais, adaptando o instituto do reenvio prejudicial à Jurisdição Plural, e também indicou como as diversas tecnologias existentes, especialmente a inteligência artificial, poderão construir uma nova concepção para a Jurisdição do século XXI. De maneira pormenorizada, a segunda grande parte da presente pesquisa principiou, no CAPÍTULO SEIS, expondo o conceito operacional polissêmico da categoria Jurisdição. Conceituar a Jurisdição é uma tarefa complexa que exige a observância ampla do período histórico, jurídico e político, não apenas do Estado mas da própria evolução humana, e dificilmente se obtém uma definição que se enquadre em todos os ordenamentos jurídicos existentes. Diante da dificuldade para sedimentação de um conceito definitivo, o primeiro tópico do capítulo se limitou a traçar notas distintivas para a respectiva categoria, concluindo que o apego demasiado à teoria poderia distorcer a realidade: nesse contexto, será, então, uma atividade jurisdicional, tutelada sob o imperativo do monopólio estatal, a desenvolvida pelos órgãos autorizados pela constituição. Em seguida, foram abordadas as tradições jurídicas e os modelos jurisdicionais existentes, como os sistemas da civil law, common law e direitos socialistas, e os modelos de Jurisdição una e Jurisdição dual. Na sequência, o terceiro tópico do capítulo tratou dos procedimentos administrativos pré-jurisdicionais, para uma reflexão de como é ineficiente e custoso, tanto ao Estado quanto ao particular, enfrentar procedimentos “administrativos” que pouco ou nada auxiliam a resolução do conflito jurídico, notadamente nos Estados de tradição romano-germânica e adotantes do modelo da civil law que permitem, em regra, uma ampla revisão judicial dessas decisões. Foram cinco os modelos administrativos expostos: Estados Unidos; Reino Unido; Estados da Europa ocidental; União Europeia e residual – neste último estaria inserido o Brasil. Na sequência, foi disposto o exemplo organizacional da common law inglesa, cuja organização judiciária está desenhada para a prestação de um serviço jurisdicional de maneira bastante ampla e relativamente informal por meio de órgãos administrativos ou de juízes leigos e de paz, inclusive em matérias jurídicas normalmente reservadas ao juiz ordinário, como penal, família, criança e adolescente, notadamente na “baixa justiça”. Feitas essas considerações preliminares, o quinto tópico do capítulo seis detalhou a ideia da origem da Jurisdição Plural, em uma conceituação para além dos dois modelos atualmente reconhecidos na doutrina mundial consistentes na Jurisdição una e Jurisdição dual. Enquanto na Jurisdição una a primeira ou a última palavra sobre o direito a ser aplicado como forma de resolução do litígio pertence ao Poder Judiciário, na Jurisdição dual os conflitos jurídicos onde o Estado está envolvido são enfrentados por órgãos jurisdicionais alheios à estrutura do Judiciário; nessa modalidade de Jurisdição, obrigatoriamente o Estado tem que estar ao menos em um dos polos da demanda – pode estar em ambos, como ocorre na disputa jurídica entre dois órgãos públicos (intraneus vs. intraneus). Mas na Jurisdição dual todos os conflitos envolvendo somente particulares (extraneus) serão obrigatoriamente dirimidos pelo Poder Judiciário, não sendo a “justiça administrativa” competente para tanto. Na Jurisdição Plural, por sua vez, os órgãos públicos para além do Poder Judiciário também seriam competentes para dirimir conflitos entre particulares (extraneus vs. extraneus). A origem da Jurisdição Plural está, preliminarmente, na utilização de órgãos públicos que também exercem deliberação jurídica, senão ociosos, com a capacidade produtiva diminuída ou inutilizada. Em geral, esses órgãos públicos estão situados nos meandros da administração pública, e são responsáveis, além de outras atribuições, pelo julgamento de processos administrativos, sem, contudo, que suas decisões estejam abarcadas pelos efeitos da res judicata. Por isso, são desprezadas quando descontentam uma das partes, possibilitando a revisão delas pelo Judiciário, em um evidente gasto de dinheiro público e desprestígio do enorme conhecimento interdisciplinar neles existente. Esses órgãos públicos, a partir da implementação de determinadas características, como a efetiva independência, e observados determinados limites de competência, como as matérias jurídicas de maior importância reservadas ao Poder Judiciário, poderiam se tornar “Órgãos Orbitais” da Jurisdição Plural, transmudando a característica de órgão de exercício de função administrativa para órgão verdadeiramente de exercício de função jurisdicional, ocasião em que careceria de utilidade, e até mesmo racionalidade, a manutenção de um sistema jurisdicional em que o mesmo Estado analisasse por mais de uma vez a mesma questão jurídica a ele submetida. Esses “Órgãos Orbitais”, então, seriam a origem da Jurisdição Plural, com o aproveitamento de estruturas administrativas “subutilizadas” atualmente existentes no Estado na efetiva função jurisdicional, buscando uma racionalidade para a custosa, e até então ineficiente, Jurisdição monopolizada – sem prejuízo, por certo, da criação de outros órgãos públicos eventualmente necessários ao exercício da Jurisdição Plural burocrática. O capítulo encerrou abordando o fascinante Tribunal das Águas de Valência, consistente em uma corte jurisdicional que existe na Espanha há mais de mil anos – instituição jurídica mais antiga da Europa e patrimônio cultural imaterial da humanidade (UNESCO/2009). O Tribunal das Águas, além de ser uma corte consuetudinária, igualmente observa o direito consuetudinário. Os juízes não necessariamente precisam ter formação jurídica, bastando conhecer o funcionamento prático do sistema local. O Tribunal é composto por oito membros, denominados de síndicos, escolhidos pelos próprios agricultores que se utilizam da água para o plantio. O objeto jurídico determinante da competência do Tribunal é a água, bem indisponível e de suma importância econômica na região voltada à agricultura. Não abarca a competência penal, mas alcança qualquer um que se beneficie do uso da água, incluindo empresas, órgãos públicos ou terceiros, que, por exemplo, tenham causado dano, ou nas águas interfira, gerando poluição, obstrução, dentre outros, e até mesmo demandas trabalhistas. O processo no Tribunal é bastante célere; os custos são baixos; não requer representação por advogado; predomina a oralidade, de modo que nenhum ato processual é formulado por escrito. A sentença também é proferida oralmente pelo presidente do tribunal, de modo bastante objetivo, em regra acompanhada de sanções pecuniárias ao derrotado, mas pode igualmente o condenar em obrigações de pagamento, de fazer ou não fazer. Se a sentença não for cumprida espontaneamente, o Tribunal pode cortar o abastecimento de água do inadimplente, inclusive requisitando força policial; se a medida consistir em outras mais severas e invasivas, como a expropriação de bens, o Tribunal precisa se socorrer ao poder estatal. As decisões do Tribunal das Águas não são submetidas a revisão pelo Poder Judiciário, mas tão somente ao controle social daquela localidade. O milenar Tribunal das Águas de Valência é um reforço argumentativo acerca da possibilidade da coexistência de órgãos jurisdicionais alheios à estrutura do Poder Judiciário, inclusive no âmbito ad extra do Estado. O CAPÍTULO SETE, que trata da Jurisdição Plural em uma análise sob a ótica da separação de Poderes, iniciou traçando elementos caracterizadores do Poder político estatal, para em seguida realizar uma descrição destacada sobre os marcos históricos acerca das teorias de separação dos Poderes políticos do Estado, desde a antiguidade até as constituições modernas. Principiou com a exposição dos pensamentos de Platão, passou por Aristóteles, Maquiavel, Locke e destacadamente Montesquieu, assim como sobre o contexto geral da primeira constituição dos Estados Unidos e da França, ainda no século XVIII, e a interpretação da teoria montesquiana por cada um desses dois Estados. Contemporaneamente, procurou expor as concepções de Hans Kelsen, José Joaquim Gomes Canotilho, Eros Grau, Reinhold Zippelius, Peter Häberle e Luigi Ferrajoli, sem prejuízo de outros doutrinadores igualmente importantes, como, por exemplo, Dallari e Rangel, todos eles trazendo uma abordagem atualizada sobre a interpretação hodierna acerca da separação dos Poderes políticos do Estado. A partir das notas gerais sobre os diversos autores citados, foram extraídas as principais ideias e sistematizadas de modo a permitir o desenvolvimento de uma releitura sobre a teoria da separação de Poderes do Estado, não em substituição às existentes, mas tão somente de modo complementar, notadamente em uma divisão entre o Poder político e Poder burocrático do Estado, de modo a viabilizar o exercício de uma Jurisdição Plural adequada à teoria do Estado – sem desnaturalizar as ideias essenciais trazidas por cada um deles, mas adaptadas à presente pesquisa. De forma sintética, extrai-se do conteúdo do capítulo sete: a) o sistema estatal de controle entre os Poderes é composto por microssistemas que que se complementam na busca pelo equilíbrio – Zippelius. Ou, na visão de Canotilho, o sistema estaria compreendido em uma ordenação controlante-cooperante de funções, onde o que realmente importa não é exatamente saber se o ato é executivo, legislativo ou jurisdicional, mas sim se esses atos podem ser feitos de forma legítima; b) O núcleo material das funções do Estado é o novo nome da separação de Poderes políticos relevantes do Estado contemporâneo – Rangel; c) o Poder político relevante do Estado, de competência funcional exclusiva dos Poderes organicamente divididos em Executivo, Legislativo e Judiciário, coexiste com o “Poder burocrático” estatal, etiquetado em regra sob a denominação de “administração pública” – Kelsen, Zippelius, Häberle, Ferrajoli e grande parte da doutrina; d) o Poder político relevante do Estado, separado materialmente em funções executiva, legislativa e jurisdicional, possui um núcleo indelegável, cujo exercício é da competência exclusiva dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário – Kelsen, Grau, Canotilho e Rangel; e) o que não estiver inserido no núcleo fundamental material de cada função de Poder político do Estado pode fazer parte do Poder burocrático e ser exercitado também pelos órgãos administrativos – Grau abordou detalhadamente a “função normativa de conjuntura”; f) os Poderes Executivo e Legislativo, enquanto órgãos supremos, por encontrarem fonte de legitimação distinta e possuírem finalidades típicas de “governo” (esfera do decidível), não podem exercer função de “garantia” própria dos órgãos públicos responsáveis pela efetivação substancial dos direitos e garantias fundamentais (esfera do indecidível); ou seja, não podem exercer funções jurisdicionais - Ferrajoli; g) além dos órgãos “supremos” e de outros órgãos “administrativos dependentes”, há no Estado Órgãos Orbitais, constituídos por “instâncias independentes” e “órgãos administrativos burocráticos independentes”, nenhum deles submetido ao “Executivo”, mas sim ao Poder jurídico do Estado instituído pelo ordenamento jurídico, os quais exercem funções executivas, legislativas e jurisdicionais na condição de Poder burocrático do Estado – Kelsen, Häberle e Ferrajoli; h) Os denominados Órgãos Orbitais, quando exercem funções “jurisdicionais”, compõe o quadro dos órgãos públicos de “garantia” – Ferrajoli; seu limite de atuação é a Jurisdição não exercida de modo exclusivo pelo Poder Judiciário – Jurisdição burocrática, a partir de uma constatação do núcleo essencial e material da função de Poder político relevante. Essa sistematização proporcionou a mudança da visão piramidal-escalonada para uma visão orbital-adequada dos órgãos públicos estatais. A visão piramidal sobre os órgãos estatais obedece, de certa forma, uma visão kelseniana sobre as estruturas do Estado. Nessa hierarquia escalonada, teríamos, dentro de uma pirâmide imaginária, obrigatoriamente um órgão inferior dependente de outro superior, todos segmentados pela linha divisória das três funções do Poder, até chegar ao órgão supremo de cada uma das funções, consistentes nos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. De acordo com a com a concepção do Estado moderno, praticamente a totalidade dos órgãos públicos burocráticos estaria inserida abaixo do Poder Executivo, de forma dependente a este órgão supremo de Poder político. Na visão orbital (onde a pirâmide imaginária seria substituída por uma imagem semelhante ao sistema solar), diferentemente, a atuação do órgão público não ocorre por meio da subordinação, mas sim a partir da adequação da competência disposta no ordenamento jurídico. O Poder do Estado está no centro do sistema, e não no ápice da pirâmide. O sistema seria constituído por subsistemas, cuja repartição e coordenação ordenada das competências estatais seriam dimensionadas pela constituição do Estado, e os órgãos instruídos por procedimentos cooperativos em uma distribuição de funções organicamente adequadas, no exercício de tarefas públicas de modo desconcentrado, em uma ordenação controlante-cooperante de funções sedimentadas por um critério de “justeza” funcional - Canotilho. No primeiro subsistema, ou na primeira órbita, estariam os órgãos de Poder do Estado, detentores e responsáveis pelo exercício do Poder político relevante, nas funções de governo, garantia e jurídica, assim como da direção política geral do sistema político global do Estado – freios e contrapesos. Na segunda órbita apareceriam as instâncias independentes, em uma espécie de órbita neutra entre o Poder político e o Poder burocrático. A partir da terceira órbita estariam alocados os inúmeros outros órgãos denominados “dependentes” situados no Poder burocrático do Estado. Quanto mais distante a órbita, menor a importância do órgão na atividade estatal. A adequação dos órgãos “dependentes” do Estado a partir da visão orbital traria uma melhor compreensão da legitimidade político-jurídica da atuação funcional dos Órgãos Orbitais do Estado, permitindo, com isso, o exercício igualmente legítimo dos Órgãos Orbitais na função jurisdicional burocrática. Os desafios apresentados por essa nova visão tridimensional-orbital-adequada para a implementação da função jurisdicional aos Órgãos Orbitais foram enfrentados sob três óticas distintas: limite, independência e integração, um necessariamente compondo o outro como forma de viabilizar, sinergicamente e de maneira segura, a Jurisdição para além do Poder Judiciário. O primeiro ponto foi abordado no OITAVO CAPÍTULO, que procurou definir o conteúdo do núcleo material da função jurisdicional por meio da conjugação dos escopos da Jurisdição com as reservas de Jurisdição como forma de encontrar um limite para a atuação do Órgão Orbital. O capítulo principiou dividindo a Jurisdição em três dimensões: política, jurídica e social – todas voltadas à finalidade da Jurisdição. Em razão da inexistência de fronteiras definidas entre a política e o direito no Estado constitucional, as duas primeiras foram relatadas conjuntamente, formando a dimensão político-jurídica, cujo conteúdo é, essencialmente, com relação ao viés político, manter o equilíbrio e a separação de Poderes do Estado, garantir as liberdades públicas negativas e a participação da sociedade na vida política do Estado, em sentido amplo, por meio de ações coletivas, judicialização da política, inclusive em atuação contramajoritária, mas principalmente nas eleições democráticas. Em seu viés jurídico, a grande finalidade seria a manutenção da integridade do direito pelo Poder Judiciário enquanto intérprete final do ordenamento jurídico. Assim, em linhas gerais, ao tempo em que nas primeiras facetas da dimensão político-jurídica da Jurisdição a finalidade seria resguardar a democracia, a constituição, o Estado constitucional e o equilíbrio entre os Poderes, nessa última faceta, voltada mais para a dimensão jurídica da Jurisdição, o objetivo é assegurar a manutenção e o equilíbrio do ordenamento jurídico, por meio de uma função “nomotética” de controle hermenêutico, podendo desempenhar o intérprete uma atuação criativa, diante da dotação de sentido para cláusulas abertas e realização de escolhas jurídicas disponíveis. A dimensão social, por sua vez, teria a missão de organizar convenientemente a vida em sociedade gerando a paz social por meio da aplicação do direito nos pronunciamentos jurisdicionais, sendo justamente esse o seu escopo: a pacificação social como forma de garantia de direitos aos cidadãos e como instrumento para a resolução de conflitos jurídicos da comunidade, de maneira residual ao que se observa nas dimensões política e jurídica. Assim, a dimensão social não toca diretamente a preservação da democracia, a participação do particular na formação da vontade política do Estado, o equilíbrio entre os Poderes, a manifestação da soberania, a criação do direito ou a manutenção do ordenamento jurídico, incluindo nele a constituição, mas sim precipuamente atua como meio para resolver o conflito jurídico dentro do processo. Definidas as dimensões da Jurisdição, os ensinamentos lusitanos sobre a reserva de Jurisdição consistiram no segundo parâmetro para a tentativa de encontrar um núcleo para a função jurisdicional. Por meio da análise da jurisprudência portuguesa, e especialmente da doutrina de Canotilho e Rangel, foram registradas duas classificações. A primeira, de Canotilho, indicando que o monopólio da última palavra estaria relacionado aos "tribunais", enquanto o monopólio da primeira palavra aos "juízes" - reserva de tribunal e reserva de juiz. A reserva de tribunal, ou da “via judiciária”, consentiria a análise da situação jurídica previamente por outros órgãos, incluindo aqueles administrativos, desde que se resguardasse a possibilidade de acesso posterior aos tribunais. A reserva de juiz não permitiria, de nenhuma forma, a análise jurídica por outros órgãos estatais, em uma reserva total de Jurisdição aos "juízes", inadmitindo-se o pronunciamento jurídico de outra autoridade que não a judiciária. A segunda advinda de Rangel, que é semelhante a de Canotilho, mas mais diversificada, classifica a reserva de Jurisdição em “reserva absoluta” (juiz), subdimensionando em "especificada" ou "não especificada", e "reserva relativa" (tribunal), podendo ser "integral" ou "parcial". Definidas as três dimensões da Jurisdição e expostos os critérios para a observação da reserva de Jurisdição, a partir da conjugação de ambos foi possível identificar, de modo aproximado – ou ao menos proposto um conteúdo essencial – do núcleo material da função jurisdicional do Estado, separando aquilo que seria atividade exclusiva do Poder Judiciário daquilo que estaria fora do núcleo da função e poderia ser exercido burocraticamente pelos Órgãos Orbitais, ou seja, constituindo uma “reserva do Judiciário” dentro da “reserva de Jurisdição” do Estado. Assim, de modo aproximado, constatou-se que o núcleo da função jurisdicional comporta integralmente, de modo principiológico, o conteúdo das dimensões política e jurídica, e, de modo axiológico, parte do conteúdo da dimensão social, notadamente nas competências que normalmente se incluem no critério da “primeira palavra” (reserva do juiz – reserva absoluta). Em linhas gerais, o critério principiológico estaria relacionado aos ideais objetivados com a formação do Estado moderno ainda na idade média, conjugados com os fundamentos que regem a separação entre os Poderes políticos do Estado, dentre eles as liberdades públicas. O critério axiológico estaria vinculado aos valores caraterísticos de cada sociedade e Estado em determinado tempo e espaço, incluindo a acepção positiva da separação de Poderes consistente no desenvolvimento dos direitos fundamentais. Dessa forma, temas como a palavra final sobre a interpretação do direito, a participação democrática da comunidade no Estado, o direito político de votar e ser votado, a garantia das liberdades públicas e o controle dos atos de Poder político relevantes de Executivo e Legislativo estariam inseridos de forma indelével no núcleo da função jurisdicional do Estado, como decorrência principiológica a partir dos motivos determinantes para a existência do Estado constitucional e para a separação e controle de Poderes políticos do Estado de modo a garantir as liberdade públicas. Estão resguardadas nesse núcleo também as liberdades contemporâneas, e não somente as liberdades modernas; por certo, muito mudou, nesse campo, desde o século XVIII, como é o caso, por exemplo, dos dados pessoais obtidos livremente na internet por meio do big data. Nessa esteira, é importante fazer uma diferenciação com relação ao núcleo da função jurisdicional e o escopo final de todo processo que é a sentença. A interpretação definitiva sobre o que é o direito estaria seguramente inserida no núcleo material da função de modo principiológico, pois essa atividade se aproximaria da natureza político-jurídica do controle da legislação ou da conformação jurídica de determinadas situações diante de uma análise complexa entre as fontes do direito, cuja norma, a partir de então, teria vinculação e efeitos erga omnes. Mas isso não enseja, desde logo e de forma automática, a unidade e a exclusividade da Jurisdição por completo ao Judiciário. Assim, por exemplo, no caso brasileiro, de modo principiológico o Poder Judiciário deteria, de qualquer forma, a prerrogativa exclusiva de interpretar o direito abstrato de modo definitivo e com efeitos erga omnes – monopólio da primeira palavra; por pressuposto axiológico, detém o monopólio da competência para aplicar o direito interpretado de modo definitivo a todos os casos concretos, proferindo a última palavra, tendo em vista que expressamente a constituição assim definiu (XXXV, art. 5º). O primeiro cuida da prerrogativa de controlar o ordenamento jurídico; o segundo simplesmente de decidir o caso concreto. Em outro norte, as reservas absolutas implícitas ou não especificadas no campo axiológico teriam grande volatilidade diante do valor adotado por cada Estado, por isso de difícil definição abstrata, entrando em uma “zona cinzenta”, mas tangenciariam os direitos fundamentais. Essa “zona cinzenta” é bastante ampla, e está situada entre o núcleo material e a parcela disponível da função jurisdicional. Para tentar estreitar essa zona cinzenta, recorreu-se, inicialmente, em um comparativo, às competências permitidas ao juízo arbitral, encontrando, nesse campo, os direitos patrimoniais disponíveis. Também foram abordados, em complemento, o Tribunal das Águas de Valência e o tribunal “administrativo” canadense Civil Resolution Tribunal – CRT, ambos órgãos efetivamente jurisdicionais alheios à estrutura do Poder Judiciário. Assim, a partir das premissas traçadas foi possível identificar os dois extremos, os temas jurídicos mais relevantes, que estão no núcleo, e as matérias ordinárias, mais afastadas do núcleo material da função jurisdicional, aptas ao exercício da Jurisdição burocrática, diminuindo significativamente a “zona cinzenta”. Dessa forma, ao menos em linhas gerais, foi possível distinguir, de modo aproximado, o núcleo da função jurisdicional, consistente no Poder político, e o residual, alcançável ao Poder burocrático. Com isso, propôs-se a seguinte distinção dentro da reserva de Jurisdição lato sensu: reserva do Judiciário; reserva do Orbital; reserva residual de Jurisdição. Ao Poder Judiciário caberia a integralidade da reserva do Judiciário, consistente no núcleo material da função, mas não a totalidade da reserva de Jurisdição lato sensu. Portanto, naquilo que foi denominado como residual, haveria a necessidade de se excluir a competência dos Órgãos Orbitais para dirimir questões jurídicas de forma definitiva e imunizada sem a intervenção do Poder Judiciário. Excluída a competência do Orbital, a reserva residual de Jurisdição também seria do Poder Judiciário. A reserva do Orbital necessariamente será expressa – não há “zona cinzenta” nem reserva implícita ou não especificada. Os critérios da primeira palavra ou da reserva absoluta não teriam cabimento na reserva do Orbital. Por não cuidar de Poder político, mas sim de Poder burocrático, haveria sempre a possibilidade de outros órgãos não jurisdicionais se manifestarem previamente a respeito da questão – não haveria sentido em manter dois órgãos subalternos para tratar do mesmo tema jurídico dentro do arcabouço estatal; não seria, inclusive, recomendado ou desejado, mas, teórica e tecnicamente, não haveria vedação. Por fim, outros dois pontos merecem destaque dentro do capítulo: primeiro que, apesar de não haver controle do mérito pelo Judiciário, a atividade nos Orbitais sofre fiscalização como qualquer outro órgão público, e suas sentenças podem ser impugnadas por mecanismos autônomos, como ocorre com as sentenças dos juízes integrantes do Poder Judiciário. Dessa forma, excluindo o sistema recursal, o Judiciário poderia ser acionado por meio de ação declaratória de inexistência e nulidade de ato jurídico, mesmo depois do trânsito em julgado, ou ações constitucionais como mandado de segurança e habeas corpus, enfim, mecanismos jurídicos que são utilizados para impugnar atos jurisdicionais de juízes para além dos recursos ordinários. Segundo, não se pretende com essa distinção de reservas jurisdicionais criar uma justiça de categoria inferior; ao contrário, cuida-se apenas de uma adaptação da estrutura estatal arcaica às necessidades da sociedade do século XXI, ampliando o acesso ao sistema de Justiça como um todo. Certamente há riscos nessa ampliação e na designação da competência jurisdicional para órgãos alheios ao Judiciário, conforme exposto no relatório do Projeto de Florença, mas especialmente a independência do julgador e o devido processo legal estão absolutamente resguardados dentro da proposta – sem olvidar que muita coisa mudou de lá para cá, inclusive a transparência na atuação pública. Definido no capítulo oito o limite da atuação jurisdicional do Órgão Orbital, ainda que de modo aproximado no tocante ao núcleo essencial da função, o CAPÍTULO NOVE tratou da independência para o exercício da função jurisdicional. A posição de independência do julgador é possivelmente o que torna a Jurisdição uma exclusividade do juiz; outros atributos, como conhecimento jurídicos, devido processo legal e imparcialidade podem ser igualmente encontrados nas demais profissões aptas a prolatar decisão jurídica em sociedade, mas nem sempre esse conjunto de fatores é capaz de proporcionar uma independência ao julgador. A independência do Órgão Orbital foi enfrentada sob duas perspectivas: jurídica e histórica. No tocante à primeira, jurídica, ela foi dividida em independência funcional para o exercício da Jurisdição e independência material com relação à administração pública. Com elação à independência funcional, tendo em vista se tratar efetivamente de exercício de função jurisdicional, as garantias elementares disponibilizadas aos juízes em cada ordenamento jurídico deveriam ser estendidas aos julgadores orbitais; no Brasil, por exemplo, a inamovibilidade, a irredutibilidade de subsídios e a vitaliciedade seriam garantias também existentes nos Orbitais, e o controle administrativo e disciplinar das funções seria exercido por corregedorias do Poder Judiciário, e não dos órgãos “administrativos”. Em outro turno, os julgadores também observariam os deveres e limitações impostas aos juízes, que vão desde as mais gerais, como vedação de filiação e exercício de atividade político-partidária, até as específicas situadas no plano processual, sob a égide das suspeições e impedimentos. Dessa forma, no tocante à independência, acompanhando a jurisprudência do TEDH e da CIDH, seria possível qualificar um órgão administrativo como “tribunal”, na verdadeira acepção do termo, a partir do momento que a ele fossem conferidas determinadas características e especiais garantias, ou seja, em outras palavras, não haveria óbice para o Órgão Orbital desenvolver a função jurisdicional de maneira independente. No segundo ponto, a independência funcional acima descrita foi agregada à independência material em relação à administração pública, que emerge sob dois aspectos: o primeiro deles é em razão do descolamento da posição dos Órgãos Orbitais da hierarquia administrativa do Poder Executivo. Com a adequação, os órgãos anteriormente denominados como “dependentes” passam a ser “independentes”, saindo da esfera do “governo” para se situarem na esfera da “garantia”, obedecendo unicamente ao ordenamento jurídico, e não mais ao dirigismo e a coordenação advinda da cúpula do Poder Executivo. O segundo aspecto da independência do Órgão Orbital com relação à administração é a imparcialidade sob a ótica da finalidade da decisão e o modo de sua construção. Conforme se destacou, quando os órgãos da administração estão situados de maneira hierarquizada na esfera do governo, o dirigismo superior é de observância obrigatória, notadamente naquela interpretação da lei a ser aplicada ao caso concreto e voltada ao interesse geral público ou do órgão – interesse primário e secundário. Diante disso, o desfecho do caso concreto é vinculado a um interesse alheio ao processo, e não ao interesse individual de resolução da situação jurídica submetida ao agente administrativo ou mesmo de efetivação de direitos na função de garantia. Ao abandonar a esfera do governo para adentrar à esfera de garantia, o julgador orbital passa a desenvolver a função jurisdicional. A supremacia do interesse público, consistente em um importantíssimo princípio que deve ser respeitado na esfera governamental, não pode ser aplicado na esfera de garantia em prejuízo ao direito individual. Dessa forma, a decisão jurídica tem, por consequência, uma alteração principiológica, da maneira como o conflito jurídico deve ser enxergado e a decisão construída. Igualmente, observa-se a mesma alteração com relação à intepretação da lei, que deixa de ser dirigida pelos superiores hierárquicos, voltada à finalidade do interesse público, primário ou secundário, passando a ter interpretação independente pelo próprio julgador, direcionada ao interesse individual daquele caso concreto, como deve ser a Jurisdição em um Estado constitucional democrático. Nessa relação, o processo que antes era considerado administrativo e agora é reconhecido como jurisdicional abandona a ótica bilateral, quando o Estado imiscuía a função de julgador com a de parte, e passa a ser observado sob uma ótica trilateral, onde há no processo duas partes e um terceiro independente delas, consistente no julgador orbital. Assim, a independência exigida do julgador é verificada também a partir do momento em que o ato administrativo se transmuda em sentença, perdendo o caráter meramente prescritivo, típico dos provimentos administrativos, adotando um caráter teorético, exigindo fundamentação “de fato e de direito”, como condição de todo provimento jurisdicional lastreado em normas jurídicas específicas voltadas à esfera das garantias. Na perspectiva histórica foi possível observar, primeiramente, a evolução do princípio da unidade da Jurisdição e os motivos pelos quais o Estado concentrou a função jurisdicional em um único órgão Judiciário, constatando-se que, não obstante em regra os órgãos administrativos jurisdicionais alheios ao Poder Judiciário estarem pautados sob a égide de tribunais de exceção, em algumas oportunidades haviam órgãos jurisdicionais legítimos para além do Judiciário, cujas exclusões do arcabouço estatal se deram por conveniência organizacional do sistema que funcionava de maneira descontrolada como um verdadeiro magma sob um viés analógico em uma sociedade agrária – situação substancialmente diferente da atual sociedade pós-moderna tecnológica. Diante dessa percepção histórica, foram identificadas características de tribunais de exceção e confrontadas com as características desejadas em um Órgão Orbital, entabulando um quadro sinótico e discorrendo, a partir dos elementos nele inseridos, um comparativo. Seguir as diferenciações traçadas pode significar um caminho relativamente seguro para trilhar o caminho inverso da unificação da Jurisdição, permitindo agora uma pluralização necessária ao enfrentamento das demandas da sociedade do século XXI, de modo a viabilizar que a Jurisdição Plural seja exercida com imparcialidade e independência nos Órgãos Orbitais, sem desgarrar de todas as conquistas civilizatórias hoje disponíveis ao cidadão por meio da Jurisdição. Enquanto o capítulo oito cuidou do limite de atuação e o capítulo nove da independência do Órgão Orbital, o CAPÍTULO DEZ tratou de expor a integração entre os órgãos da Jurisdição Plural. Pensar em uma Jurisdição para o Estado do século XXI impõe necessariamente o abandono de antigos dogmas. A ampliação dos órgãos jurisdicionais para além do Poder Judiciário consiste, certamente, em um desapego à visão tradicional da organização funcional jurisdicional, mas essa mutação, por si só, não seria suficiente às exigências dos novos tempos. Aceitar, assim, a existência de órgãos jurisdicionais para além do Poder Judiciário talvez seja a barreira com menor grau de dificuldade a ser superada diante dos anseios da atual sociedade pós-moderna. É por isso que, além dessa releitura contemporânea sobre a clássica organização estatal para o exercício da função jurisdicional, a presente pesquisa tratou de entabular mecanismos de integração humanos e cibernéticos para o efetivo desenvolvimento de uma Jurisdição Plural A integração por mecanismos humanos foi elaborada com base no instituto do reenvio prejudicial, existente no direito da União Europeia, adaptado ao exercício da Jurisdição Plural, notadamente para o enfrentamento dos hard cases pelos Órgãos Orbitais e para a composição das lacunas eventualmente existentes no sistema, notadamente diante da reserva do Judiciário, possibilitando, além disso, a emersão de uma sentença multicêntrica, para além daquilo ordinariamente observado na decisão administrativa ou judicial, quando, então, ela seria construída com a participação de autor, réu, julgador orbital e juiz. O reenvio prejudicial, que de nenhuma maneira poderia ser vislumbrado como um mecanismo de fiscalização, mas sim de coparticipação e integração, fundado em uma modalidade de exercício da Jurisdição voltada ao século XXI, muito distante daquela concepção formalista observada desde a sedimentação do Estado constitucional do século XVIII, atuaria sob importantes vertentes: Primeiramente, o reenvio prejudicial serviria como mecanismo auxiliar de consulta disponível aos julgadores e partes para dirimir relevante e determinante dúvida sobre o direito, material ou procedimental, que possa interferir no desfecho da causa – e por que não também com relação à eventual avaliação fática complexa? A segunda vertente estaria sedimentada no fato do controle da interpretação definitiva sobre o direito estatal continuar a cargo do Poder Judiciário, de maneira idêntica ao que ocorre no direito da União Europeia com relação ao seu Tribunal de Justiça, sem que isso obste a atividade nos Órgãos Orbitais e, ao mesmo tempo e por reflexo, gere estabilidade ao sistema. A terceira vertente derivaria a partir da conjugação dos dois pontos acima destacados, e consistiria na segurança jurídica, igualmente sob dois aspectos: o primeiro, conforme atentamente abordado, seria que a interpretação e coerência do direito continuaria sendo mantida pelo Poder Judiciário; cláusulas abertas e o controle de constitucionalidade, somados a quaisquer outras dúvidas eventualmente existentes no caso concreto sobre o direito em tese, poderiam ser dirimidas por meio da consulta, efetuada pelo julgador e pelas partes. O segundo, e bastante relevante, seria a agilidade e a manutenção dos pronunciamentos jurídicos hoje considerados “administrativos” ao estarem dotados dos efeitos da coisa julgada, mas não sem contar com a participação do Judiciário na formação da decisão, quando necessário. Isso aumentaria a segurança jurídica, geraria agilidade processual e principalmente economia aos cofres públicos ao possibilitar a integração jurisdicional no decorrer do processo jurisdicional em tramitação no Órgão Orbital, e não somente após ter sido encerrado ele por completo – quando normalmente ocorre quando o Poder Judiciário detém a última palavra. Evitar-se-ia o que hoje ocorre com a decisão que é considerada administrativa: o controle (decisão administrativa), do controle (revisão administrativa), do controle (juiz), do controle (tribunal), e sobre esses controles, eventual outro controle por meio de recursos aos tribunais superiores, tudo isso em uma Jurisdição que seria competente para analisar bens jurídicos “disponíveis” – tendo em vista que os principais bens estariam aos cuidados da reserva do Judiciário –, e em muitas vezes a palavra final depois de esgotados todos os recursos serviu apenas para confirmar aquela primeira decisão, ensejando o reconhecimento de uma quarta vertente, que consistiria na economia que a Jurisdição Plural devidamente sistematizada poderia conferir aos cofres públicos evitando a repetição de procedimentos desnecessários. A quinta vertente emergiria na utilização do reenvio prejudicial como fator de multiplicação da independência e imparcialidade do julgador orbital ao afastar as indevidas ingerências políticas, por vezes escusas, que ocorrem na esfera burocrática estatal, permitindo a construção da sentença orbital de acordo com a Jurisdição do Estado constitucional democrático, diante da possibilidade de intervenção do Poder Judiciário no processo em tramitação do Órgão Orbital. A sexta vertente estaria estabelecida no auxílio que o Judiciário poderia dar naquelas situações em que a competência para o julgamento da matéria seria do Órgão Orbital, mas os comandos processuais para a efetivação de determinadas medidas estivessem inseridas na “reserva do Judiciário”, como, por exemplo, uma busca e apreensão ordenada pelo Orbital a ser cumprida “dentro da casa do indivíduo”, ocasião em que o reenvio prejudicial seria utilizado como instrumento complementar para aportar incidentalmente a imperiosa ordem judicial, em qualquer fase do processo, seja ela de conhecimento ou execução – a “consulta”, nesse caso, converter-se-ia em “pedido”, que poderia ser bastante simplificado, sem desnaturalizar o instituto. Na sétima vertente, o reenvio prejudicial também seria uma alternativa de grande utilidade especialmente naqueles Estados que não permitem o controle de constitucionalidade difuso – assim como derivações desse sistema. Feitas essas considerações sobre como o modelo europeu do reenvio prejudicial adaptado à Jurisdição Plural poderia ser viabilizado formalmente nos Órgãos Orbitais, notadamente para suprir as lacunas do sistema pluralista, materialmente ele seria igualmente importante para a construção da decisão jurisdicional. É importante consignar, nesse campo, que o reenvio prejudicial, quando decidido por um colegiado competente na matéria, formaria a jurisprudência relativa ao tema, passando a ser vinculativa ultra partes e erga omnes, se assim permitido pelo ordenamento jurídico estatal, como ocorre, por exemplo, nas súmulas vinculantes na civil law ou nos precedentes da common law. Antes disso, se reconhecida a repercussão geral, o Poder Judiciário poderia suspender a tramitação de ações semelhantes existentes em todos os Órgãos Orbitais até pronunciamento definitivo. Também nesse diapasão, emergiria uma outra faculdade processual contemporânea, que seria a possibilidade de inaugurar um processo coletivo ou até mesmo de efetivar uma decisão estruturante. Assim, restariam preservados íntegros os dois sistemas de Jurisdição, do Judiciário e do Orbital, sem indevida interferência de um sobre outro, respeitando os seus respectivos objetivos e especificidades, mas literalmente acoplados por meio das pontes de transição fornecidas pelo reenvio prejudicial, desenvolvendo ensinamentos e aprendizados mútuos e contínuos, próprios de uma racionalidade transversal: o Judiciário fornecendo o devido auxílio nos hard cases, sem, contudo, julgar o mérito da demanda, que continuaria sob a responsabilidade do Orbital. Esse diálogo altero entre os Órgãos Orbitais e o Poder Judiciário efetivado por meio do reenvio prejudicial não se afastaria em sua essência daquilo que se denominou como comércio entre juízes, diálogo entre juízes, mundialização judicial ou auditório global, quando juízes submetidos a soberanias distintas dialogam em busca de conhecimentos complementares na jurisprudência de outros Estados ou tribunais supranacionais como reforço do argumento jurídico para enfrentar os hard cases a eles concretamente submetidos. Mas enquanto esse contexto trata de um diálogo mundial entre as diversas jurisdições estatais, aqui estaríamos cuidando do diálogo “glocal” entre as “duas” jurisdições internas, a Jurisdição enquanto Poder político e a Jurisdição enquanto Poder burocrático. O “acoplamento estrutural altero” ensejador de pontes de transição e viabilizador de uma racionalidade desejada por um comércio entre juízes pertencentes a distintos sistemas jurisdicionais heterogêneos possibilitaria o surgimento de uma decisão jurídica construída a partir de uma visão multicêntrica do processo, superando a visão bilateral da decisão administrativa – onde o Estado se confunde com a parte – e a tradicional visão trilateral da decisão jurisdicional – autor, réu e juiz –, pois a contribuição jurídica decisória contaria com o auxílio do juiz ao julgador orbital, em uma prestação jurisdicional que tem como escopo principal a resolução do conflito jurídico concreto, mesmo que para isso precise inverter ou superar a clássica lógica processual, pois a construção da decisão estruturalmente multicêntrica na Jurisdição Plural contaria, então, com a participação de autor, réu, julgador orbital e juiz, o que seria diferente de todos os sistemas até então conhecidos na Jurisdição ordinária, em que, em regra, a participação do Poder Judiciário ocorre posteriormente ao desfecho do processo “administrativo”. Assim, diante de todo esse contexto, o instituto do reenvio prejudicial auxiliaria a efetivação da Jurisdição Plural, acompanhando os anseios evolutivos da sociedade e do Estado do século XXI, sem desgarrar de conquistas civilizatórias especialmente no tocante à segurança jurídica e à missão do Poder Judiciário no Estado constitucional democrático. A integração humana entre Judiciário e Orbital, assim como a notabilidade do próprio instituto do reenvio prejudicial adaptado ao exercício da Jurisdição Plural para a manutenção da coerência do sistema como um todo, não obstante a sua importância, são instrumentos que necessitam de suporte tecnológico para se tornarem efetivamente eficazes na Jurisdição do século XXI. Em razão disso, além dos mecanismos de integração humanos, dispostos na primeira parte, a segunda parte do capítulo dez expôs, de modo auxiliar, mecanismos cibernéticos para o efetivo desenvolvimento de uma Jurisdição Plural. A integração cibernética da Jurisdição Plural principiou demonstrando, em linhas gerais, preceitos sobre a quarta revolução industrial vislumbrada desde o final do milênio, cujas tecnologias expandem seus reflexos também sobre a Jurisdição. A Jurisdição atual 3.0 e que tem como ápice a automação de procedimentos será substituída pela Jurisdição 4.0, liderada pela utilização ampla da inteligência artificial em todos os seus setores. Diante disso, foram expostos temas como inteligência artificial (forte e fraca), algoritmos, machine learning, deep learning, big data, analitycs, jurimetria, blockchain, cloud computing, dentre outras, indicando, pontualmente, como essas tecnologias poderão ser implementadas e utilizadas na Jurisdição Plural do século XXI. Mas nem só no uso de ferramentas tecnológicas consistirá a Jurisdição do futuro: haverá uma verdadeira mudança de concepção. Em razão disso, é possível observar um processo de revolução jurisdicional iniciado em diversos pontos espalhados pelo mundo para a formação de smart courts e tribunais online. Hoje, as ODRs – online dispute resolution – são uma realidade especialmente na iniciativa privada, como se vislumbra nas plataformas virtuais de e-commerce, notadamente nos Estados Unidos e na China. No entanto, as ODRs têm paulatinamente adentrado aos procedimentos dos tribunais, o que pode ser considerado como o primeiro passo voltado à mudança. Isso, porém, é apenas um detalhe de toda a mutação. As ODRs não seriam apenas um alargamento virtual de operações judiciais atualmente existentes, simplesmente melhorando a conveniência e a acessibilidade aos tribunais, pois a adoção deles pelos tribunais, conjuntamente com outras tecnologias, mudaria por completo a Jurisdição como nós conhecemos. Em linhas gerais, os tribunais online estariam sedimentados em três pilares: procedimentos integralmente online; incorporação de ODRs e utilização de mecanismos de inteligência artificial, não apenas como assistência para a tomada da decisão jurídica, mas especialmente para formar um sistema amplamente informatizado, que atuaria desde os primeiros passos da demanda, auxiliando o usuário por meio de um assistente virtual comandado por inteligência artificial, que faria um filtro preliminar, por meio de uma fase inicial exploratória acerca do litígio, esclarecendo se a demanda é ou não juridicamente válida e, em sendo, quais os caminhos disponíveis para a sua consecução, fornecendo, desde logo, os “formulários” virtuais de solicitação do pedido. As opções não serão apenas jurisdicionais: o sistema teria a possibilidade de instruir o usuário a procurar outros mecanismos alternativos, públicos ou privados, para a tentativa de solucionar o conflito jurídico. Esses instrumentos consistiriam na contribuição mais importante dessa nova era para o conhecimento e efetivação de direitos, especialmente ao jurisdicionado não representado por advogado. É por isso que os tribunais online não são apenas versões mais baratas, eficientes e acessíveis dos tribunais tradicionais, mas se apresentam como uma nova instituição capaz de transformar as características e os objetivos da prestação jurisdicional estatal, tornando-a menos adversarial, mais flexível e sensível ao contexto como um todo, expandindo sua atuação para além da visão clássica do processo. A nova visão sobre a Jurisdição causaria ao menos três mudanças disruptivas: a transmudação da percepção atual do tribunal como sendo um local físico para outra concepção vislumbrando o tribunal como um local híbrido ou totalmente virtual; o abandono da ideia de que apenas humanos podem intermediar conflitos jurídicos; e, por fim, a utilização ampla dos dados processuais por meio do big dada e analytics, não apenas para a formulação de estratégias internas para melhorar o enfrentamento processual dos conflitos jurídicos, mas especialmente na utilização desses dados jurisdicionais para o desenvolvimento de políticas públicas, notadamente estensiva aos grupos sociais das minorias e aos que em regra não possuem acesso à Jurisdição – tendo em vista que o acesso seria aumentado pelo uso informal de plataformas virtuais; quando esses indivíduos isolados procurassem a Jurisdição, por meio da análise de dados seria possível identificar demandas reprimidas, e expandir os resultados de litígios individuais para grupo coletivos maiores. Nessa via de acesso, os tribunais online oferecem uma perspectiva de equilíbrio, aprimorado em razão das qualidades da tecnologia digital e, em particular, no uso de algoritmos e dados. Os processos online podem ser conduzidos de qualquer local onde se tem acesso à internet, a qualquer hora e a qualquer dia, eliminando não apenas barreiras físicas, mas também econômicas. Isso gera reflexos não somente ao jurisdicionado, mas também aos tribunais, que não precisam manter enormes espaços físicos, que podem ser substituídos, por exemplo, por pequenos centros “híbridos” de atendimento melhor localizados – como um “quiosque” em um shopping center, por exemplo. O uso da inteligência artificial também nivela o campo de jogo entre os litigantes habituais e eventuais, e, como tudo ocorre de maneira online, acessível de longe, sem a necessidade de deslocamentos ou enfrentamento da burocracia em repartições públicas e sem nenhum custo, a virtualização também faz a ponte entre a periferia e o centro. Mas esses procedimentos existentes nos tribunais online diferem radicalmente daqueles digitalizados vislumbrados atualmente: serão informais, não haverá audiência nem a participação simultânea dos envolvidos, ao contrário, ele se desenvolverá com uma contínua participação dos integrantes processuais, com sucessivas trocas de informações e documentos, sem qualquer espécie de sustentação oral, notadamente nos casos de menor complexidade – ou que admitam o julgamento antecipado, por exemplo. A mudança radical não se limitaria ao procedimento, pois refletiria também na liguagem tecnológica. A atual comunicação nos tribunais pode ser classificada como “síncrona”, e o julgamento online deve comportar formas “assíncronas” de interação. Assim, enquanto na primeira todos os envolvidos precisam estar disponíveis simultaneamente para que o processo avance, na segunda esse sincronismo é dispensável. Essa seria a primeira geração dos tribunais online; mas olhando ainda mais para o futuro, uma segunda geração de tribunais online deverá emergir, na qual uma grande parte desses serviços será prestado inteiramente por seres artificiais, inclusive com determinações jurídicas vinculativas. E quando se fala em revolução para o futuro, ela não se limitará a forma como a Jurisdição é desenvolvida, mas principalmente a maneira como ela se apresenta para a sociedade. Será, por isso, uma transformação igualmente cultural, alterando, por certo, também o escopo da Jurisdição, deixando a função jurisdicional de ser somente o locus de resolução do conflito ou o produto jurídico final do litígio – sentença –, passando a constituir a matéria prima inicial para a prevenção dos conflitos existentes em sociedade, notadamente diante da big data analitycs, compartilhando esses resultados com a esfera goveramental do Estado para o melhor desenvolvimento de políticas públicas, destacadamente as que irão previnir litígios. Será a Jurisdição a informar com propriedade estatística quais são os verdadeiros problemas sociais, e não apenas os jurídicos, em uma nova concepção de exercício de funções de Poder político. Assim, é possível afirmar que as smart courts e os tribunais online serão o futuro da Jurisdição. O Judiciário 4.0 já ensaiou os primeiros passos no Brasil, mas ainda está distante da efetiva aplicação da inteligência artificial na Jurisdição de modo pleno, diferentemente daquilo atualmente observado em seu ponto extremo, como os juízes robôs da Estônia ou as smart courts chinesas, que se valem de inúmeros mecanismos tecnológicos para o respectivo funcionamento, certamente com o uso de todas as expostas na presente pesquisa, inclusive de plataformas virtuais, sendo permitido afirmar, a partir deles, que os tribunais online já são uma realidade. Outra realidade também é a Jurisdição Plural 4.0 por meio de um Órgão Orbital existente no Canadá. A província de British Columbia, situada no extremo oeste do Canadá, possui o primeiro tribunal online daquele país, denominado Civil Resolution Tribunal – CRT, competente para apreciar: lesões em veículos automotores de até US$50.000; pequenas causas com valor limitado a US$5.000; litígios de propriedade (condomínio), em qualquer valor; sociedades e associações de cooperativas, para disputas de qualquer valor. O Civil Resolution Tribunal – CRT foi estabelecido em lei, e está em funcionamento desde julho de 2016 – possivelmente foi o primeiro tribunal online em operação no mundo. Apesar de ser denominado como “tribunal”, o Civil Resolution Tribunal – CRT não integra o Poder Judiciário, e sua competência para julgamento não se limita aos casos jurídicos envolvendo o Estado, como ocorre na Jurisdição dual. Suas decisões, no entanto, fazem coisa julgada. A tramitação processual no tribunal online canadense está sedimentada em quatro etapas, todas virtuais. A primeira etapa é exploratória, onde o usuário interage com software de inteligência artificial para compreender melhor o contexto do litígio. Se o usuário, depois de todo o esclarecimento jurídico que recebeu, decidir propor a demanda, basta preencher um formulário que é imediatamente disponibilizado. A segunda etapa objetiva autocomposição, realizada na plataforma virtual entre os litigantes; na terceira etapa haverá a mediação, também operacionalizada com auxílio da inteligência artificial; a quarta e última etapa consiste no processo em si; é assíncrona e finaliza com a sentença, prolatada por um humano. O Civil Resolution Tribunal – CRT é, assim, um grande exemplo de Órgão Orbital em plena atividade; ele pode ser considerado a evolução de uma outra atividade desenvolvida no Canadá desde a década de 1970 que era denominada rentalsmen, para a apreciação de demandas envolvendo aluguéis. E quando se propõe na Jurisdição Plural a utilização de órgãos públicos existentes no arcabouço estatal para a ampliação da função jurisdicional heterocompositiva, é esse, em princípio, o espírito que se pretende seguir. A proposta da Jurisdição Plural, sem prejuízo da criação de outros órgãos públicos, primeiramente objetiva a adequação dos que já estão em atividade, economizando tempo e dinheiro público, como o Canadá fez: transformou um instituto simplório – rentalsmen –, mas de bom funcionamento, em um verdadeiro “tribunal” – CRT –, voltado para o futuro por ser online, muito mais leve e desburocratizado, como deve ser a Jurisdição do século XXI. Nesse campo, o Brasil nos traz bons exemplos preliminares de plataformas virtuais – ODR – disponíveis para que consumidores resolvam seus problemas diretamente com fornecedores previamente cadastrados, normalmente empresas de grande porte, como é o caso do consumidor.gov.br, existente também em aplicativo para smartphone, as quais, com poucas alterações, também poderiam se tornar verdadeiros tribunais online. O capítulo dez traça um pensamento final sobre um futuro não distante, onde todas as tecnologias descritas na presente pesquisa, assim como outras futuramente disponíveis, irão, do ponto de vista organizacional, de algum modo integrar todos os sistemas de “justiça”, principiando com uma nuvem comunitária (cloud computing), que não será apenas do “Poder Judiciário”, mas sim da “Jurisdição”, englobando tanto a exercida por juízes enquanto Poder político relevante, quanto a desenvolvida por julgadores orbitais na condição de Poder burocrático. Os sistemas operacionais, então, serão únicos, compartilhados entre Judiciário e Orbitais. O blockchain permitirá que essas informações transitem virtualmente em uma cadeia de segurança de modo a garantir sua autenticidade do início ao final do processo, especialmente na utilização do instrumento de coparticipação do reenvio prejudicial. O big data será tão valioso no Judiciário quanto nos Orbitais; aliás, todas as informações existentes, amplificadas diante do aumento dos órgãos jurisdicionais estatais, permitiriam um visão holística para além do Judiciário, de modo a possibilitar a definição de estratégias globais ainda mais efetivas, não apenas represivas, mas especialmente preventivas. E a inteligência artificial será a grande aliada do julgador para a construção da decisão jurídica, praticamente fazendo o grande trabalho preliminar necessário à pesquisa e organização dos argumentos fático-jurídicos, resguardando a complexidade decisória ao ser humano para que em cada decisão concreta ele possa lapidar a resposta jurisdicional artesanalmente diante do conjunto bruto de informações produzidas pela máquina; aliás, não apenas o julgador se valeria da IA, mas também as partes, que contarariam com assistente jurídico virtual que poderia lhes prestar assessoria jurídica plena, tornando a Jurisdição muito mais simples e realmente acessível, inclusive e especialmente aos hipossuficientes “não representados” – de modo amplificado, acompanhando o proposto na ideia dos tribunais online anteriormente destacados. Todo esse conjunto auxiliaria o desenvolvimento de uma Jurisdição sustentável, atendendo ao 16º objetivo de desenvolvimento sustentável da Organização das Nações Unidas – ONU, ao se converterem instituições públicas arcaicas de utilidade limitada em verdadeiros órgãos jurisdicionais, auxiliando na pacificação social de conflitos jurídicos, proporcionando acesso simplificado à justiça por meio de órgãos eficazes, responsáveis e transparentes existentes em uma Jurisdição Plural. Como é possível verificar, não estamos distantes das smart courts em uma Jurisdição Plural 4.0, seja no Poder Judiciário ou nos Órgãos Orbitais; basta quebrarmos os antigos dogmas e preconceitos que em nada contribuem para a evolução humana. Afinal, parafraseando Susskind, a Jurisdição é um serviço, e não um local.